Otto de Oliveira Lara Resende foi um jornalista e escritor brasileiro. Otto é pai do economista André Lara Resende. Seu pai, Antônio de Lara Resende, era professor, gramático e memorialista, e foi casado com Maria Julieta de Oliveira, com quem teve vinte filhos, dos quais Otto era o quarto.
Ecoam ainda nos dias de hoje as consequências de histórias como as de boca do inferno, publicado originalmente em 1957. talvez naquele tempo o escritor e jornalista otto lara resende não imaginasse o quão preciso poderia ser este compacto exemplar. o mais provável é que soubesse. em um contexto em que a religião dita as regras, o autor traz à superfície os mais bem guardados baús dos porões da família mineira. não por acaso, as sete narrativas aqui reunidas têm como protagonistas meninos e meninas que, no fim da infância, são lançados de um momento para outro no conhecimento tenebroso das coisas. É sempre aí - na gruta sob a laje, no porão cheirando a mofo, no quarto quieto no meio da noite, no moinho solitário e monótono - que se dá a improvável revelação. com o peso do que foi longamente gestado, com a força de uma límpida poesia da dor. boca do inferno permaneceu durante décadas fora do comércio, não por falta de pedidos, mas porque seu autor - exigente - vivia a reescrevê-lo, adiando continuamente as novas edições. de fato, só a exigência literária extremada poderia lograr uma escrita como esta. escrita que flui, mas, súbito, se interrompe, deixando à mostra profundidades insondáveis da existência.
No primeiro conto do livro de praga, “a pianista”, antônio fernandes acaba de chegar a praga. flanando pela cidade, ele vê o anúncio de uma exposição de andy warhol no museu kampa: disaster relics é o nome da mostra. entre imagens terríveis de acidentes automobilísticos e retratos de personalidades conhecidas vistas como produtos em linha de montagem - e assim despojadas de sua identidade -, ele ouve o som de um piano. quando se afasta da sala de exposições em busca da origem daquela música - “clarões sonoros com a brevidade de relâmpagos” -, ocorre uma cisão na serena ordem cotidiana: as situações bizarras se sucederão, de conto em conto, impregnadas de um sexo que parece fadado a jamais se satisfazer, a apontar para a perda e não para a satisfação, para a morte e não para a vida. a impressão que se tem é de que os desastres da exposição de warhol passaram para a experiência pessoal do protagonista, e que o desejo o conduzirá, fatal e invariavelmente, à perda, à despersonalização e à morte.
Laurindo flores é o zelador do asilo da misericórdia, na fictícia lagedo, pequena cidade em minas gerais. em seu diário, ele descreve seu dia a dia num casarão condenado, prestes a desabar, cuidando de crianças órfãs. ao mesmo tempo que é capaz de praticar gestos covardes, e até mesmo atrozes, o protagonista alimenta o sonho de apagar seus erros e alcançar a redenção. "poderoso e estranho", com linguagem "habilmente construída pelo romancista", nas palavras do professor antonio candido, o braço direito é um romance magistral. otto lara resende convida o leitor a mergulhar nos pensamentos de um personagem tacanho e conhecer um universo engenhosamente lapidado, feito de ressentimento e insignificância. o volume inclui posfácio da escritora ana miranda, que trabalhou arduamente, junto com o autor, na revisão final do livro.
Os contos de o vôo da madrugada vêm cobertos pelo manto da noite. os enredos das dezesseis histórias do livro são variados e as técnicas narrativas se adequam, sempre de forma inventiva e surpreendente, às motivações dos textos. uma obsessão comum, porém, confere unidade de escura atmosfera às narrativas do livro: os personagens - e o próprio escritor - vivem experiências nos meandros noturnos da consciência. a solidão persegue os personagens do livro de forma desesperada, a ponto de fazê-los pensar inúmeras vezes em dar cabo da existência. o salto para fora da vida que percorre os contos, porém, é metáfora para representar estados de espírito excepcionais, como aqueles que traduzem o torpor do sexo, a liberdade da fantasia e o fascínio pela arte. a obsessão pelo desfecho da vida é associada a forte carga erótica, mas também à busca pela forma perfeita. as histórias contadas por sérgio sant'anna mergulham, assim, nas zonas sombrias da mente para delas emergir com novas tonalidades, numa outra e inesperada organização da realidade - iluminada e irresistivelmente sedutora.
Este volume reúne duas saborosas novelas de otto lara resende. a primeira delas, “a testemunha silenciosa”, relata, pelos olhos de um garoto, um crime de família. a cidade (inventada pelo autor) de lagedo, em minas gerais, reproduz em sua escala miúda as consequências da revolução de 30 - mas não são as grandes questões políticas que estão em jogo, e sim os pequenos movimentos de medo e sobrevivência rasteira que vêm à tona. “a cilada”, o segundo texto do volume, partilha o mesmo universo da primeira novela. mas aqui a narrativa se concentra obsessiva numa única figura, o clássico avarento, revisitado no sertão mineiro. como diz o escritor cristovão tezza em seu esclarecedor posfácio: “estão aqui a pequena cidade interiorana de minas gerais, a linguagem embebida de traços do dialeto e do saber rural popular, no léxico e na sintaxe, as figuras arquetípicas do brasil agrário - o padre, o prefeito, o boticário, a mulher forte, o marido fraco, o bêbado, o dono da venda, a criança, a professora. [...] duas grandes linhas da literatura brasileira de seu tempo encontram na obra de otto a barreira transformadora da urbanização - física e mental - de um país novo que estava surgindo”.
Desde o final dos anos 1960 até sua morte em maio de 2020, sérgio sant'anna se dedicou obsessivamente a erguer uma das obras mais originais da literatura brasileira. neste volume, os escritores andré nigri e guilherme pacheco reuniram algumas das entrevistas mais antológicas que concedeu e alguns dos seus textos críticos, que falam de nomes como rubem fonseca e dalton trevisan e teorizam sobre o fazer literário. esse livro seria um lado b da produção de sérgio sant'anna, mas para o leitor a sensação será a de reencontro com sua voz singular.
Otto costumava dizer que sua entrada no jornalismo foi como a entrada de um cachorro numa igreja: entrou porque a porta estava aberta. sua carreira teve início quando ele, recém-saído da escola, passou a frequentar a redação do diário. de lá em diante, foi um caminho sem volta. com organização de ana miranda, o príncipe e o sabiá reúne sessenta perfis biográficos de nomes como guimarães rosa, manuel bandeira, graciliano ramos, nelson rodrigues, murilo mendes, getúlio vargas, juscelino kubitschek e rubem braga. com humor e elegância, ao falar dos outros, inevitavelmente falava de si. “a ideia que faço de mim?”, ele pergunta em “quem é otto lara resende?”. e responde: “um sujeito delicado e violento. delicado pra fora, violento pra dentro. um poço de contradições. um falante que ama o silêncio. um convivente fácil e um solitário.”
A obra de sérgio sant’anna é de difícil classificação. transgressor contumaz, ele vem desde a década de 1960 testando os limites da prosa, dos gêneros - e da própria ideia de literatura. seus romances, contos, poemas, novelas e peças de teatro romperam tradições e derrubaram barreiras entre alta e baixa cultura, entre popular e erudito, numa linguagem descarnada tão reconhecível quanto escorregadia, que influenciou inúmeras gerações de escritores. apesar da explícita vocação experimental, sant’anna sempre foi também autor de prosa acolhedora, cujo interesse parece residir não em alienar o leitor, mas, ao contrário, em incluí-lo nos intricados e deliciosos jogos literários que concebe. os contos de o homem-mulher configuram a expressão máxima dessa ideia. É o caso da história em que o protagonista se apaixona pela vendedora de lencinhos que junta dinheiro para o tratamento de câncer do marido. em meio à alta carga erótica da trama, o conto também se revela delicado como os produtos da garota. ou, então, do magistral e imediatamente antológico “eles dois”, que narra, com força cinematográfica, a história de um casal morando num casarão nos anos 1970. capaz de surpreender até seus leitores mais antigos, o homem-mulher é também uma perfeita porta de entrada para a obra rica, vasta e memorável de sérgio sant’anna.
No início da década de 1990, otto lara resende iniciou uma profícua e caudalosa colaboração com a folha de s. paulo. jornalista tarimbado, com passagens por diversas redações, otto escrevia nesse espaço diário crônicas sobre uma vasta gama de assuntos: os desajustes da política (vivíamos a era collor), os amigos desaparecidos (como nelson rodrigues, vinicius de moraes e paulo mendes campos), os costumes no rio de janeiro (cidade que o mesmerizava), as mudanças no nosso idioma, a literatura etc. sempre com clareza e delicadeza exemplares. esta reunião de suas crônicas na folha é uma edição ampliada de um volume publicado pela companhia das letras em 1993 e organizado, na época, por matinas suzuki. desta vez, o jornalista humberto werneck recebeu a incumbência de coordenar o volume, garimpando mais de setenta crônicas nunca antes publicadas em livro. e o otto cronista é nada menos que um clássico do gênero: sua prosa, escorreita e refinada (mas nunca hermética), se molda à perfeição a amplitude de temas e pontos de vista apresentados diariamente nas páginas do jornal. a leitura das notícias o alimentava, claro, mas também há aqueles tópicos consagrados por outros cronistas antes e depois (a exemplo de rubem braga e fernando sabino, amigos e personagens de alguns textos deste volume), como a impiedosa passagem do tempo, os encontros e desencontros proporcionados pela grande cidade, a nostalgia de quem sabe que tudo, afinal, é breve e desaparece um dia. Às vezes, na edição seguinte do jornal.
Em a tragédia brasileira, publicado originalmente em 1987, a exuberância temática e o experimentalismo formal de sérgio sant'anna se resolvem numa síntese brilhante. definido pelo próprio autor como um "romance-teatro", o livro tem traços de romance, monólogo, teatro e ensaio. o centro da obra é o atropelamento de jacira, uma menina de doze anos com a sexualidade prestes a desabrochar. o episódio é recriado do ponto de vista de várias testemunhas, entre elas o poeta voyeur de espírito romântico e suicida e o próprio motorista, para quem a menina se torna objeto de desejo, adoração e culpa. ao conduzir as ramificações da história, o autor-diretor enfrenta seus próprios dilemas pessoais na relação com o elenco e nos percalços do processo criativo. mais do que compor um enredo com início, meio e fim, sant'anna procura extrair do acidente todas as possibilidades estéticas e emocionais: "a partir dessa pequena morte, refletir tudo", diz o autor. em um epílogo memorável, buda e jesus cristo aparecem como protagonistas de uma bem-humorada reflexão filosófica e religiosa.
Amigos desde a juventude em belo horizonte, otto e o escritor, cronista e editor fernando sabino (1923-2004) mantiveram uma ligação epistolar como poucas em nossa literatura. É sob todos os aspectos uma proeza em um tempo em que não havia computadores pessoais (mas máquinas de escrever) nem e-mail (era preciso bater perna até o correio) nesse vasto intercâmbio entre os dois autores ao longo do tempo e de diversas cidades. este volume inédito traz as cartas de otto a sabino ao longo de mais de trinta anos de uma sólida amizade - que perduraria até a morte do primeiro, no início dos anos 1990. enviadas de lugares como rio de janeiro, bruxelas e lisboa (nestas duas últimas cidades otto viveria como adido cultural), as cartas trazem o ponto de vista singularíssimo de um autor sobre os mais diversos aspectos da vida: dos amores à literatura, das transformações nos costumes à política do brasil. nestas cartas escritas com mão levíssima e dicção altamente literária, comparece um elenco de personagens que iriam decidir os rumos do brasil nos mais diversos campos, da literatura à política, da música popular às finanças. guimarães rosa, nelson rodrigues, jânio quadros, san thiago dantas, chico buarque e joão goulart, entre muitos outros, aparecem como protagonistas, interlocutores ou mesmo em sublimes (humorísticas ou amorosas) evocações de um autor que assim definiu seu gosto por escrever tantas cartas: "não é grafomania. É civilidade".
Os contos de sérgio sant'anna parecem demonstrar que há uma narrativa latente em todas as coisas do mundo: no quadro de balthus e na entrevista do assassino psicopata, no concerto de joão gilberto que não houve e na foto desbotada do rio dos anos 20, na aula de filosofia e na carta de amor, na conversa telefônica e no frango do goleiro. até na página em branco há uma história que pede para ser escrita, nem que seja a crônica da impotência do escritor para escrevê-la. todos esses temas estão reunidos nesta antologia, e cada um deles traz uma maneira diferente de narrar, um vocabulário, uma dicção, um ritmo e uma duração que lhe são próprios. mas apesar da variedade de temas e de formas, a prosa narrativa de sant'anna tem um estilo, uma assinatura, uma voz inconfundível: é sempre possível sentir o timbre cálido, entre o lírico e o irônico, do autor. a exemplo de muitos dos maiores escritores da modernidade, sérgio sant'anna rompe as fronteiras entre os gêneros, em especial entre o ensaio e a ficção. no que diz respeito aos temas, por trás da sua grande variedade é fácil perceber nos relatos do autor algumas constantes: as perversões sexuais no limite (ou além) do descontrole, a fronteira tênue entre a razão e a loucura, as relações movediças entre amor e morte. em certos momentos, o escritor tangencia o universo de nelson rodrigues, em outros o de dalton trevisan, em outros ainda o de rubem fonseca. literatura que se expressa numa escrita maleável, que transita do coloquial ao protocolar, do científico ao confessional. prosa cambiante, porosa, permeável às nuances da vida. "a aguda consciência da relação simbiótica entre forma e matéria é uma das qualidades que fazem de sérgio sant'anna um contista por excelência, um mestre da narrativa curta." - josé geraldo couto, na introdução do livro
Em seu primeiro livro, o cultuado jornalista, prosador e frasista revela sua verve incomparável ao tratar de temas como violência, desigualdade social, preconceito e a mesquinharia do nosso cotidiano. sua escrita combina o lirismo das paixões não realizadas com a aspereza das situações banais, sem nunca perder de vista o fulgor intelectual e a curiosidade por tudo aquilo que diz respeito à natureza humana. no posfácio desta edição, a professora clara de andrade alvim chama atenção para o contraste que aparece tanto na escolha dos temas quanto na linguagem dos contos, em especial no texto que dá nome ao livro: “se ‘o lado humano’ constitui-se, até certo ponto, em um exercício de realismo, de domínio do escritor sobre seu assunto e sobre a técnica da narrativa, noutra dimensão, ele também consiste em uma espécie de fábula, que contém, é claro, uma moral”.
Nas três narrativas de o monstro sérgio sant'anna mescla gêneros diversos, da epístola à entrevista policial, explorando mais uma faceta de seu universo surpreendente: feito de paixões rigorosas e raciocínios imprevistos, nele o insólito e o banal, o instinto e uma acurada reflexão mental caminham lado a lado.os relatos aqui reunidos destrincham os próprios rituais de transgressão pelos quais o desejo se transforma em narrativa - e vice-versa.de comum, as três histórias trazem a marca de um erotismo que talvez seja mais da mente que do corpo e que nunca está isento de um voyeurismo cuja lógica implícita transforma o leitor em cúmplice de atos tresloucados.
Sete contos mostram personagens em dilemas, com um cotidiano que está longe de ser trivial, na linguagem precisa de um mestre da prosa. com suplemento de leitura.
Publicado pela primeira vez em 1986, amazona foi recebido com espanto pelo público. este retrato transgressor sobre a libertação da mulher não só destoava da produção literária da época, mas acertava em cheio as questões políticas do país, que dava os primeiros passos em direção à transição democrática. o mito grego das mulheres guerreiras é a metáfora que conduz o livro, que narra a ascensão da bela dionísia, uma típica esposa da classe média carioca, ao poder ― primeiro como modelo de revista erótica e depois como uma proeminente figura política do brasil dos anos 1980. fazendo uso dos melhores artifícios da ficção, sérgio sant’anna põe lado a lado o mais fino das ironias e digressões machadianas e os elementos vitais dos romances de folhetim ― sexo, drogas, chantagens e intrigas políticas ― e cria uma obra que permanece única mesmo depois de três décadas de seu lançamento.
A organização, a descrição e o estudo da correspondência de murilo rubião e otto lara resende têm por objetivo trazer a público as cartas que os escritores trocaram por mais de 40 anos (1945-1991). a edição desses documentos, obra do tempo de inegável valor literário, mas também histórico, visa atender aos leitores interessados no período da cultura e da literatura brasileira vivido pelos dois escritores. além de apresentar feição pouco conhecida da obra de murilo e de otto (a de "carteadores"), o livro contribuirá para o conhecimento da vida pessoal, de facetas do processo de criação literária, das redes de convivência com escritores, intelectuais e políticos, bem como da linguagem e da cultura das épocas em que viveram.
No rio de janeiro do início da quarentena, o narrador passou a observar uma vizinha que saía de madrugada para dar uma volta no estacionamento a céu aberto. embora ela não soubesse que estava sendo acompanhada, uma estranha cumplicidade se estabeleceu entre os dois, e sua presença simbolizava a promessa de um encontro arrebatador, ao mesmo tempo em que representava a morte pairando ao redor. assombroso e revelador, “a dama de branco” foi o último texto publicado por sérgio sant’anna, que faleceu em 2020, durante a brutal pandemia de coronavírus. além da narrativa que dá título ao livro, o volume é composto por outros dezesseis contos ― que tratam da solidão, da memória, do desejo e da própria escrita ― e uma novela, que estava em vias de ser terminada. a dama de branco atesta que a prosa de um dos principais escritores brasileiros contemporâneos se manteve vigorosa e afiada até os últimos dias. organização e apresentação de gustavo pacheco.
Depois dos aclamados o homem-mulher e o conto zero e outras histórias, sérgio sant’anna segue surpreendendo seus leitores. nas nove narrativas reunidas em anjo noturno, um dos principais escritores brasileiros da atualidade explora num gênero híbrido ― que abrange contos, memórias e novelas ― temas a um só tempo díspares e intrincados, como morte e vida, infância e velhice, paixão carnal e amor fraternal. o conto “talk show” narra a participação de um escritor em um programa de auditório, numa sucessão de situações embaraçosas e eletrizantes que se desenrolam tanto no palco quanto nos bastidores. já em “augusta”, o autor relata o encontro entre um professor universitário e uma produtora musical numa festa em copacabana. a mesma atmosfera lasciva marca outras narrativas, como “um conto límpido e obscuro”, em que o narrador recebe a visita inesperada de uma amiga artista plástica com quem não tem relações amorosas há cerca de dois anos. nesse universo de tensão entre desejo e profunda solidão, a prosa de sérgio sant’anna percorre com engenhosidade e maestria as memórias e os anseios do escritor.